segunda-feira, 26 de junho de 2017

"Institucionalizado"?

"Institucionalizado"?

"Institucionalizado"?

Sabe aquelas ocasiões em que um pequeno monte de pensamentos repentinamente reúnem-se formando uma linha coerente, mas meio confusa? É como se um amontoado de cartões contendo pequenas informações estivesse espalhado numa mesa, e de repente nota-se que alguns deles se encaixam. Deixei dois fios de pensamento nesse estilo aqui no blog: um sobre "apropriação cultural reversa" e outro sobre violência doméstica contra o homem (e a novela Mulheres Apaixonadas).

Uma amiga minha compartilhou em seu Facebook uma postagem de uma criatura aí [n01],apontando um "racismo ontológico" na sociedade, em razão da comoção que houve quando descobriram que o irmão da Suzane von Richtofen estava em uma cracolândia, em comparação com os negros que sofrem o mesmo destino.

Acredito que ele acerta nos sintomas, mas não no diagnóstico. Se cavoucarmos um pouco, será fácil encontrarmos alguma instância de racismo, ou de discriminação mais geralmente falando. Mas, numa primeira camada, eu notaria apenas duas coisas: espanto e empatia.

Espanto, porque não estamos preparados para ou acostumados com a ideia de que uma pessoa abastada, privilegiada, possa um dia chegar no fundo do poço. Talvez seja alguma heurística psicológica associar beleza ao sucesso e feiura ao fracasso, e quando vemos um contra-exemplo a mente dá um bug...

E a empatia, aqui, seria o lado oposto da moeda - ou melhor, a falta de empatia. Em um primeiro nível, é normal termos mais compaixão por alguém próximo - família, parentes, amigos, e por aí vai. Quanto mais distante do círculo, mais rarefeita é esta compaixão, e mais sujeita a variações ela se torna.

Eu não seria tão rápido ou precipitado em apontar racismo nessa conversa toda. Racismo remete a alguma atitude deliberada, consciente, algo mais afeito a uma ação ou omissão - coisas como negar entrada em um estabelecimento, não querer dividir a mesa na sala de alimentação, segregar bebedouros etc., e não a julgamentos de meio segundo. Não tentarei ser preciso aqui, acho que já deu para captar a ideia.

De toda forma, há quem veja o racismo de outra maneira, em um formato mais ubíquo. Notei isso em um comentário, reproduzido neste print [np]. Correndo o risco de interpretar mal, o que parece é que o autor do print entende a diferença de tratamento entre o loirinho e os escurinhos da craco como evidência de que "a sociedade é racista" (de forma mais probabilística, que seja). Não pretendo discutir sobre se o que o print diz é válido ou não; porém, esta afirmação abre uma abordagem muito interessante.

Lembra quando no começo falei daqueles pequenos amontoados de cartões, encaixes e o caramba a quatro?

Como já devem saber, no meu tempo livre eu estudo e traduzo artigos e informações acerca de direitos e questões dos homens e meninos. Uma questão que acredito ser pervasiva em todas as questões masculinas é a falta de empatia para com os homens, de forma generalizada. Dá para fazer verdadeiras listas sobre isso, seriosamente. Mas nada será tão marcante quanto o caso Boko Haram.

Para quem está pouco familiarizado, o Boko Haram é um grupo terrorista islâmico radicado na Nigéria, bastante avesso a qualquer coisa que lembre o Ocidente. Por volta de 25 de fevereiro de 2014, como noticia a ABC [n02], a torpeza de um de seus ataques beirou o surreal. Pelo menos 59 meninos foram trancafiados em seus alojamentos estudantis, cortados no fuzil e os seus alojamentos foram então incendiados. Esse tipo de massacre, apesar de ser bastante comum (até abril de 2014, quase quatro mil mortes foram atribuídas ao Boko Haram [n03]), mal chega a ser reportado.

Indo na mesma levada do "racismo institucional" ou mesmo da falta de empatia que eu comentei acima, seria fácil argumentar que trata-se ou de uma região distante, de modo que não tenhamos proximidade, ou uma região marginalizada (ao contrário, sei lá, do massacre de Beslan), ou uma região primariamente negra...

Mas esta teoria fura com um singelo acontecimento: o rapto de mais de 200 meninas em Chibok, 14 de abril de 2014 [n04]. Não demorou quase nada até que imensas campanhas de hashtag #BringBackOurGirls (Devolvam Nossas Meninas) tomassem conta da internet, com direito a artistas segurando cartazinhos, o presidente Obama e sua esposa Michelle pronunciando gravemente sobre a opressão que este grupo impunha às meninas que "apenas querem perseguir seus sonhos" e toda essa exposição midiática. Organizações do mundo inteiro, desde a Cruz Vermelha até serviços de inteligência de várias nações, empenharam seus recursos a fim de ajudar o pouco que fosse.

Agora, um exercício rápido. Seguindo a mesma estrutura de pensamento, seja do print [np], seja do post [n01], adaptando o que precisar ser adaptado, qual a conclusão? Me parece muito difícil de escapar - mas eu pergunto mesmo assim: nossa sociedade é "ontologicamente misândrica"?

Afinal aquelas meninas raptadas... eram meninas! Se fossem meninos, elas não seriam raptadas e usadas como moeda de troca - seriam metralhadas e torradas. Se fossem meninos, não seriam vendidas como escravas - seriam torradas e metralhadas! Há alguma dúvida se isso aconteceria?

"Nós ficamos horrorizados" com uma menina sendo impedida de estudar e seguir suas ambições, ainda mais num sistema recheado de mensagens de incentivo a elas [n05] -- precisamos empoderar as meninas, este é o destino delas...

Os garotos que morreram aos milhares? Que dificilmente são identificados como "meninos", no máximo como "habitantes" ou "pessoas"? Dane-se. Ninguém liga.

A única tragédia que merece ser contada é a da menina impedida de estudar; todos os meninos dantes mortos também têm suas histórias, também "estudavam a fim de perseguir suas ambições" - mas as mortes deles não importam, não merecem comoção. "Ninguém quer ouvi-los, ninguém quer salvá-los, e a misandria é parte fundamental dessa surdez seletiva..."

Talvez com uma diferença: eles não rendem crítica social foda.


Notas e Links

[n01](1, 2) http://archive.is/b3DTO
[n02]http://archive.is/He3Yi
[n03]http://archive.is/HCJT5
[n04]http://archive.is/ToJ54
[np](1, 2) http://imgur.com/Ic1sdmV
[n05]E.g. não faz muito tempo o Trump chegou a assinar leis de incentivo a mulheres em Ciencia&Tecnologia: http://archive.is/nWhJi

2 comentários:

  1. Legal! Eu não conhecia essa parte do seu trabalho. Até que para quem escreve um texto como esse, você escreve pouco. Ou será o pouco tempo para escrever as crônicas? Acrescentei na lista de recomendados do A Vez dos Homens que Prestam.
    Beijos.

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    1. É complexo, mulher, é complexo...

      Além da falta de tempo (mesmo meu blog de traduções anda a passos de formiga), eu não me sinto profundamente criativo. Sinto como se todo mundo já tivesse falado de todas essas coisas - e ou elas estão nos backups dos blogs oldschool ou estão em artigos gringos.

      Mas de fato, eu escrevo pouco. Preciso praticar mais, ler mais e até pesquisar mais.

      De todo modo, muito obrigado! Beijos!

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